Escravidão por dívidas e as raízes do trabalho escravo rural no Brasil -Ana Pontes 2016.
- professoraanaponte
- Feb 1
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Updated: Mar 9
1- Notas introdutórias
Não é possível dissociar a história da colonização territorial brasileira da história da formação do trabalho rural no Brasil. A primeira tem em sua marca a noção preliminar de que os concessionários das parcelas territoriais da Colônia previam a utilização de mão de obra, quase que exclusivamente escrava, para explorar as terras concedidas através das capitanias e estas por sesmarias. Nesse sentido, a escravidão e a concessão baseada em critérios predominantemente de classe e sobrenomes compreendem dois aspectos que marcaram de tal forma a constituição do trabalho rural no Brasil que mantém suas cicatrizes entreabertas até os dias contemporâneos.
Ainda que encerradas formalmente em 1822 (poucos dias antes da proclamação da independência política do Brasil) os efeitos práticos das capitanias hereditárias ainda se fizeram visíveis e sobretudo seus efeitos políticos e culturais permaneceram ainda por mais tempo. Por outro lado, a escravatura, embora tenha encontrado seu termo aparente em 1888 - não por acaso também em curto espaço de tempo antes da proclamação da República - não deixou de imprimir suas vergastadas nas formações residenciais de diversas cidades, fossem nos centros urbanos, fossem na zona rural, bem como determinou de forma profunda o tom das negociações da nova classe de ex-escravos e escravas em uma relação extremamente desigual.
Sem pretensões de usurpar a narrativa histórica a especialistas, usamos destes dois breves marcos para lançar as âncoras temporais de nossa análise que tem como objetivo principal estabelecer uma contribuição crítica na percepção que existem lacunas na abordagem das relações entre estudos conhecidos em Direito Agrário (especialmente doutrinas gerais) e o fenômeno do trabalho escravo por dívidas na esfera rural. Como acessórios, discorrer sobre características próprias do trabalho escravo na esfera rural observando peculiaridades, bem como também trazer uma provocação sobre a relação com a questão da proliferação do latifúndio no Brasil. Esta lacuna é identificada como nosso problema, cuja reflexão ora apresentada busca contribuir e provocar outras visões dentro do Direito Agrário. A escolha pela linha proposta, identificada em “Atividades agrárias como objeto do Direito Agrário” foi propositalmente pensada pela percepção que vem ocorrendo frequentemente um deslocamento de objeto, como se a visão de trabalho rural existisse apenas na identificação de pertencimento na esfera do Direito do Trabalho, inclusive nas situações de desvirtuamento para a escravidão contemporânea, quando é sobejamente conhecido que a escravidão por dívidas tem características acentuadas na esfera agrária por diversos fatores que demonstraremos no presente artigo. A visão, simplista, não apenas enfraquece a gama de temáticas concernentes ao Direito Agrário, mas contribui indiretamente para invisibilizar diversas situações de opressão provenientes do trabalho rural que poderiam ser trabalhadas em debates acadêmicos da área jurídica agrária, o que justifica a relevância da contribuição, da abordagem e da escolha da linha. Compreende-se necessário o fomento da temática por pesquisadores e pesquisadoras que busquem ir além, realizando a indispensável interdisciplinaridade para obtenção de recursos que instruam a luta por aumentar o leque de temáticas da realidade agrária, e que estas, numa perspectiva mais global, possa contemplar a dignidade e os direitos humanos.
2- A falsa dicotomia da impertinência do aprofundamento da temática do trabalho rural dentro do estudo do Direito Agrário
Sob certo ponto de vista, as discussões sobre a pertinência ou não das relações de trabalho no estudo do Direito Agrário, ainda se mostram surpreendentes. Nesse sentido, LARANJEIRA (1984), SANTOS (1993) e MARQUES (2009) apresentam visões a respeito da questão. O primeiro, ainda que reconheça a influência de uma questão sobre outra, pondera pela divisão de áreas, assegurando o pertencimento do Direito do Trabalho como disciplinador. Santos e Marques reforçam por sua vez o conceito de interdependência, ainda que de forma frágil, e reforçando uma divisão que - a nosso ver - parece deslocar o cerne da questão para uma dicotomia no fundo inexistente: de que “as diferenças no contexto normativo são evidentes” (MARQUES, 2009, p. 190). Reforça Santos em citação ratificada e escolhida por Marques que:
que não se pode negar é a interdependência, quando o trabalhador depende do produtor rural como empregador e este depende daquele para desenvolver sua atividade. Não se pode confundir o âmbito da regulação jurídica. O produtor rural, muitas vezes, no exercício de sua atividade, participa de atos jurídicos não regulados no Direito Agrário, como a compra de um trator, o contrato de transporte rodoviário de seus produtos, a locação de um armazém, etc. Da mesma forma, ao contratar empregados, estará se sujeitando a um outro ramo do direito que não é agrário. (MARQUES, 2009, p. 191).
Ora, neste sentido, restringir o debate à questão normativa, onde é evidente a competência da esfera trabalhista, seria minimizar excessivamente a questão. Lembremos, à tempo inclusive, que o breve debate sobre a competência da Justiça trabalhista, por exemplo, para julgar danos morais cometidos durante a relação de trabalho foi naturalmente encampada para o decisório trabalhista, justamente pela percepção de que a interdependência se fazia explícita. Entretanto, não é essa questão periférica que jogamos luz no debate, e sim uma visão mais ampla. Sigamos.
A perceptível fragilidade do estudo do Direito Agrário em relação à atualidade de suas discussões é palpável, ainda que se custe a admissão. Com frequência, a atualização das obras mais consultadas ou popularizadas ocorre com menor frequência que outras áreas, como Direito Ambiental, por exemplo, e não é incomum reedições realizadas com poucos acréscimos e menos críticos do que o desejado. Lamentavelmente as raízes, já sugeridas no início deste artigo, podem ter sido lançadas na constituição dos debates do Direito na perspectiva agrária, em especial no enredamento da visão privilegiada dos bens sobre as relações humanas no campo. Tanto quando a lenta transição do Código Civil de 1912 para o atual, que realizou a mudança da prioridade das coisas para o foco sobre as pessoas e suas relações, o Direito Agrário também vem demonstrando com a contribuição de novos e novas juristas até sob perspectivas menos datadas(1). Ainda há um movimento lento e persistente que busca afastar a predominância dos estudos focados em Direitos Reais como relação prioritária do Direito Agrário. Noções mais condizentes com a contemporaneidade dão conta da necessidade premente de um Direito Agrário de compleição constitucional e estabelecendo as indispensáveis relações com o Direito Ambiental, numa percepção das relações entre as pessoas e o ambiente numa visão de desenvolvimento com sustentabilidade. A admissão da ligação humana neste contexto, demonstra que os bens compreendem um instrumento e não um protagonismo.
Ora, uma vez que ainda lutamos por uma visão mais ampla do Direito Agrário não nos surpreende que ainda existam discussões sobre compartimentalizações de assuntos que terceirizam relações que de fato constituem um foco relevante do Direito Agrário. E que não podem perder de vista as relações humanas na construção da produção agrária. A crítica, porém, é que a “demissão” de certos temas resulta num “açúcar amargo” para utilizar uma expressão gullariana2. Artigo completo disponível em https://site.conpedi.org.br/publicacoes/y0ii48h0/4uubp611/0DCdEgE1JyXmYTAt.pdf
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